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Queerhet's contra a heteronormatividade

Heteroqueers contra a heteronormatividade:

Notas para uma Teoria Queer inclusiva. (1)

Por Ana Cristina Santos(2)

Resumo: Emergindo na década de 1990, a Teoria Queer coloca-nos hoje estimulantes desafios teóricos, éticos e metodológicos. Com base na investigação realizada sobre o movimento lésbico, gay, bissexual e transgênero português entre 1998 e 2005, este artigo pretende refletir sobre a emergência de uma recente categoria – a de “Heteroqueers” (straight queer, queerhet ou hetroqueer), ou seja, heterossexuais que rejeitam ativamente os privilégios associados à heteronormatividade – à luz de uma teoria queer feminista, identificando ganhos e riscos, e esperando contribuir para futuras pistas de investigação nesta área.


Introdução


Nos anos 1980, diversos fatores contrariaram o período de abertura social que moldou o processo de “homossexualização” de que fala Dennis Altman (1996), reportando-se aos Estados Unidos da América em finais da década de 1970. Entre estes fatores, destacam-se, por um lado, a forte reação concertada por parte dos conservadores e da ala política de direita e a crise da AIDS e, por outro, os conflitos em torno das questões de gênero (feminismo lésbico, em finais dos anos 1970) e de etnia dentro da comunidade lésbica, gay, bissexual e transgênero. Se o primeiro conjunto de fatores conduziu a uma renovação do ativismo radical, apoiado em alianças com outros movimentos e no reconhecimento da necessidade de um novo referencial teórico, o segundo conjunto de fatores – interno à própria comunidade LGBTQI+ – suscitou um questionamento da identidade lesbigay que havia anteriormente fundado todo o movimento LGBTQI+. De fato, começou-se a considerar a identidade sexual uma categoria porventura simplista e redutora da diversidade do movimento, representando sobretudo uma experiência masculina, branca e de classe média. Assistiu-se então a uma cisão entre teorias da homossexualidade: enquanto umas recorrem a um biologismo essencialista (o “gene gay”) buscando justificar a orientação sexual por recurso à natureza, outras – maioritariamente desenvolvidas por ativistas e acadêmicos – radicalizam a abordagem construtivista da homossexualidade, constituindo uma nova política radical da diferença. Fortemente influenciados pelo pós-estruturalismo francês e pela psicanálise de Lacan, emerge assim a Teoria Queer, cuja principal inovação reside no desafio ao pressuposto até então dominante de uma identidade LGBTQI+ homogênea. A Teoria Queer parte de cinco idéias centrais.


  1. Em primeiro lugar, as identidades são sempre múltiplas, compostas por um número infinito de “componentes de identidade” — classe, orientação sexual, gênero, idade, nacionalidade, etnia, etc. – que se podem articular de inúmeras formas.


  1. Em segundo lugar, qualquer identidade construída – como, de resto, todas são – é arbitrária, instável e excludente, uma vez que implica o silenciamento de outras experiências de vida. Na verdade, a afirmação de uma identidade, em vez de constituir um processo de libertação, obedece a imperativos estruturais de disciplina e regulação que visam confinar comportamentos individuais, marginalizando outras formas de apresentar o “eu”, o corpo, as ações e as relações entre as pessoas. Seidman formula este pressuposto quando afirma que as identidades são, em parte, “formas de controle social uma vez que distinguem populações normais e desviantes, reprimem a diferença e impõem avaliações normalizantes relativamente aos desejos” (Seidman, 1996: 20).


  1. Em terceiro lugar, ao invés de defender o abandono total da identidade enquanto categoria política, a Teoria Queer propõe que reconheçamos o seu significado permanentemente aberto, fluído e passível de contestação, abordagem que visa encorajar o surgimento de diferenças e a construção de uma cultura onde a diversidade é acolhida. Portanto, o papel individual – como forma de capacitação – e coletivo – em termos políticos, jurídicos e de reconhecimento social – que a identidade pode desempenhar não é rejeitado.

  1. Em quarto lugar, a Teoria Queer postula que a teoria ou política de homossexualidade centrada no “homossexual” reforça a dicotomia hetero/homo, fortalecendo o atual regime sexual que estrutura e condiciona as relações sociais ocidentais. Neste sentido, a Teoria Queer visa desafiar tal regime sexual enquanto sistema de conhecimentos que coloca as categorias heterossexual e homossexual como pedras angulares das identidades sexuais. De fato, a Teoria Queer considera a hetero e a homossexualidade como “categorias de conhecimento, uma linguagem que estrutura aquilo que conhecemos sobre corpos, desejos, sexualidades e identidades” (Seidman, 1996: 12-13).


  1. Por fim, a Teoria Queer apresenta-se enquanto proposta de teorização geral sobre a “sexualização de corpos, desejos, ações, identidades, relações sociais, conhecimentos, cultura e instituições sociais” (Seidman, 1996: 13).


Em anos mais recentes, assiste-se a uma mudança no pensamento queer contemporâneo. Tal mudança passa por questionar esta corrente teórica, examinando a possibilidade de acolher heteroqueers enquanto produtores de uma ciência não-heteronormativa. O conceito heteroqueer remete para a recente ênfase da Teoria Queer e do ativismo LGBTQI+ enquanto oposição à heteronormatividade, mais do que à heterossexualidade anteriormente perspectivada de forma redutora enquanto coletivo homogêneo. Deste modo, à heterossexualidade é atribuído um grau de reconhecimento relativo às suas complexidades internas e potenciais externos.


Torna-se particularmente interessante – bem como capacitante, alargando o potencial analítico da Teoria Queer – converter a heterossexualidade em objeto de escrutínio científico, à semelhança do que tem sucedido a grupos e indivíduos não heterossexuais estudados pelas ciências sociais desde a década de 1950. Na vanguarda deste projeto está a reivindicação – assumida por uma nova vaga de investigadores/as a nível internacional – de um espaço queer para atores queer não-convencionais. Aqui se insere a proposta de uma “heteroqueerness” enquanto forma de ação identitária e política.


Com base na investigação realizada sobre o movimento LGBTQI+ português desde 1998, este artigo pretende refletir sobre a emergência de heteroqueers à luz de uma teoria queer feminista, identificando ganhos e riscos, e esperando contribuir para futuras pistas de investigação nesta área.

1. Enquadramento teórico das sexualidades


O estudo da orientação sexual e da identidade de gênero enquanto questões sociológicas tem cerca de meio século. Desde os estudos iniciais, fortemente marcados por discussões essencialistas e biologistas, até aos contributos de W. Simon e J. H. Gagnon (1967), McIntosh (1968) e Foucault (1978, 1985, 1986)(3), o construtivismo emergiu como o modus operandi da investigação sobre sexualidades(4).


Nas décadas de 1970 e 1980, fora do espaço da academia, a consolidação de movimentos LGBTQI+ na Europa e nos EUA, constituiu uma notável fonte para o conhecimento que estava prestes a nascer. De fato, foi após Stonewall, em 1969, que se desenvolveu uma teoria social sobre sexualidades. Nasciam assim os Estudos Gays e Lésbicos.


Durante a década de 1990s, sob influência de J. Derrida, L. Althusser e J. Lacan, surgem os Estudos Queer como tentativa de abarcar questões aparentemente descuradas pelos Estudos Gays e Lésbicos mais convencionais, nomeadamente as que se relacionam com desconstrução e mudança social(5).


Mais recentemente, registra-se uma viragem na Teoria Queer, expandindo o seu potencial analítico para além das especificidades de cada orientação sexual ou identidade de gênero. Mais do que comportamentos, a Teoria Queer disseca sobretudo dicotomias, rótulos, normas e principalmente a heteronormatividade. Esta reviravolta inclui uma renovada atenção às questões de masculinidade(6), cidadania(7), heterossexualidade(8), “pomo-sexualidade”(9) e “queers de segunda geração”(10).


Incluído no conjunto de “queers de segunda geração” está o conceito de Heteroqueer(11). Smith (1997) define este novo conceito:


[…] Embora se possa pensar em tal termo como simplesmente relacionado à sexualidade, o uso emergente do termo queer também indica noções radicais sobre gênero. Em ambos os aspectos, o queer emerge da oposição e subversão dos binários da sexualidade, como hetero/homo, e do gênero, como masculino/feminino. Minha compreensão de queerness inclui a redefinição de Kate Bornstein do transgênero como "transgressivamente sexista" e seu apelo por uma reunião de forças queer "que inclua qualquer pessoa que se preocupe em admitir suas próprias ambiguidades de gênero [...] que inclui todas as sexualidades, raças e etnias, religiões, idades, classes e estados do corpo "(1994, p. 98). [...] Eu reivindico a identidade de heterossexual queer para promover meus próprios desejos por um mundo de múltiplas possibilidades, ao invés de um meio de me beneficiar do queer chic. Tal mundo seria aquele em que não estivéssemos restritos por binários de sexo e gênero ou pela balcanização de grupos de identidade. Ainda assim, não apagaríamos a diferença e respeitaríamos a necessidade de limites considerados necessários para a autonomia individual e de grupo.[…] Temporariamente, pelo menos, tenho um lar na comunidade mutante de queerness como um heterossexual queer. (Smith, 1997)


Para Michael O’Rourke, a noção de “heteroqueer” visa:


[…] redesenhar códigos heterossexistas através da proliferação de teorias queer que celebram sexualidades não heteronormativas, as práticas queer de heteronormativos e as vidas e amores daqueles homens e mulheres que optam por situar-se além do círculo encantado no centro heteronormativo.(2005: 112)


Este tema coloca uma série de questões, particularmente importantes ao nível da participação e reconhecimento entre pares. Quem são os heteorqueers? São insiders ou outsiders? Até que ponto difere a sua identidade percepcionada daquela que reivindicam para si mesmos? Será esta a mais recente fórmula encontrada pelo privilégio heteronormativo para corromper os avanços da política queer?


Todas estas questões merecem uma análise cuidadosa, à semelhança do que investigadores como Calvin Thomas (2000), Michael O’Rourke e Lisa Diamond (2005) têm feito durante os últimos cinco anos. Todavia, um compromisso politicamente estratégico com a Teoria Queer não deve impedir o/a cientista social de levantar novas questões.


2. O contexto LGBTQI+ em Portugal


O contexto português tem sido amplamente estudado. Reconhece-se a influência do catolicismo, o défice de ação coletiva, a fraqueza dos movimentos organizados. Nesse cenário, o movimento LGBTQI+ português está agora na sua adolescência. Tendo a homossexualidade sido descriminalizada apenas há 23 anos (1982), ainda se mantêm diferentes idades de consentimento para relações entre pessoas do mesmo sexo e entre pessoas de sexo diferente(12). Existe uma lei de uniões de fato para casais do mesmo sexo aprovada em 2001, mas direitos como visita em caso de doença, escolha do regime de patrimônio ou a adoção permanecem ausentes. A discriminação com base na orientação sexual é inconstitucional desde 22 de Abril de 2004, mas os casos de violência e manifestações de semblante (direta ou indiretamente) homófobo sucedem-se. Paredes-meias com um outro Estado-nação, democrático e socialista, onde os casamentos entre pessoas do mesmo sexo deixaram de ser tabu – Espanha –, o movimento LGBTQI+ português tem procurado reflexos dessa abertura reivindicando direitos semelhantes na 6ª edição da Marcha Anual, em Junho de 2005.


Na arena dos direitos LGBTQI+, o contexto nacional é, portanto, rico, complexo e ainda pouco estudado(13).


2.1. Heteroqueers à portuguesa


Em Portugal quem pode ser considerado heteroqueer constitui a minoria dentro da minoria. Ainda assim, regista-se um aumento do número de pessoas que, não obstante a sua auto-percepcionada heterossexualidade, escolhem demonstrar o seu apoio público aos direitos LGBTQI+. Tal foi o que sucedeu durante a última edição da Marcha LGBTQI+, na qual diversos/as heterossexuais participaram, revelando assim o seu compromisso no combate contra a heteronormatividade. Neste evento, recolhi cinquenta depoimentos de pessoas que marchavam a título individual, ou seja, que não se inseriam em nenhuma das organizações presentes. Estes depoimentos, bem como as conversas mantidas com ativistas LGBTQI+ durante e após o evento, revelam um consenso generalizado relativo ao aumento da participação de heterossexuais na Marcha.


Existem diferentes papéis desempenhados por heteroqueers no contexto de eventos LGBTQI+. Podem ser identificados os intelectuais orgânicos (usando uma terminologia gramsciana), as famílias de pessoas LGBTQI+ e os/as ativistas. Para os propósitos deste artigo, centrar-me-ei no ativismo.


Os e as heteroqueers que são membros de associações LGBTQI+ encontram-se numa posição de vulnerabilidade. Ultrapassadas as explicações iniciais, tácitas ou diretas, prestadas a outros membros do movimento acerca dos motivos subjacentes à sua participação, a tarefa ainda está no seu início.


Participar num movimento LGBTQI+ representa duas coisas distintas para os/as heteroqueers. Por um lado, ao tornarem-se parte do movimento LGBTQI+, os/as heteroqueers dissolvem ou, pelo menos, complexificam a distância entre “nós” e “eles”, contribuindo para conhecimentos e estratégias partilhadas. O processo de tomada de decisão orienta-se assim para objetivos, mais do que por identidades. Diferentes pessoas, com diferentes orientações sexuais, filiações políticas ou posições religiosas, juntam-se no combate à homofobia e à heteronormatividade. Portanto, a participação ativa de heteroqueers em associações LGBTQI+ pode contribuir para a erosão do armário a partir de dentro, desmontando a tradicional imagem do/a heterosexual. Foertsch, em “In Theory If Not In Practice”, considera que uma reivindicação enquanto lésbica por parte de alguém que não se identifica habitualmente enquanto tal pode constituir uma jogada política poderosa e reconhece que, para ela, uma mulher heterosexual euro-americana, “assumir uma identificação homossexual […] é uma forma de praticar uma política de identidade” (Schlichter, 2004: 553). “Lesbianismo político” implica, portanto, uma forma de resistência ideológica à heterossexualidade compulsiva de que nos fala A. Rich (1980), mesmo que não se registrem contatos sexuais entre pessoas do mesmo sexo. Esta forma de lesbianismo político foi também exercida por mulheres heterossexuais nos campos de paz de Greenham Common, no Reino Unido, na década de 1980. Estas mulheres abraçavam voluntariamente a designação “lésbica” como forma de ativismo (Roseneil, 2000).


Por outro lado, quando os/as heteroqueers saem do espaço do ativismo LGBTQI+ para regressar às suas diversas atividades (enquanto profissionais, mães, amigos, maridos, etc.), aprendem também alguns dos significados de discriminação direta, enfrentando a decisão constante de revelarem ou não a sua heterossexualidade. Porque haverá sempre quem pergunte por que razão ela/ele faz parte daquela associação. A família achará possivelmente estranho. O namorado ou namorada pode até sentir-se inseguro/a. É nesse momento que os heteroqueers podem optar por construir um novo armário, feito da escolha ideológica de evitarem expor a sua heterossexualidade perante o mundo exterior. Ao tornar-se parte do grupo, os/as heteroqueers aprendem a jogar com significados e símbolos que criam avaliações ambíguas acerca da sua sexualidade. E tudo isto decorre, conscientemente ou não, com o conforto de se ter sempre um lugar seguro para o qual regressar, em última instância.


A existência de heteroqueers decorre, sobretudo, da sua atitude de participação pública no ativismo LGBTQI+. Tal atitude contribui para criar pontes e dissolver desconhecimentos. De acordo com Sasha Roseneil, quando se reporta à experiência de Greenham Common nos anos 1980:


[…] Greenham foi um lugar onde as mulheres heterossexuais eram desafiadas a pensar sobre lesbianismo, frequentemente pela primeira vez. No Reino Unido, nos anos 1980, muitas mulheres, em especial aquelas que não se tinham envolvido com a ação política feminista, nunca tinham encontrado lésbicas anteriormente, não estavam conscientes da sua opressão ou da possibilidade de o lesbianismo constituir uma identidade positiva. (Roseneil, 1995: 147)


Assim, combater a opressão sexual com base na orientação sexual garantiu uma oportunidade para que estas mulheres não-lésbicas se aproximassem da comunidade, conquistando simpatia e envolvimento onde anteriormente existia apenas ignorância e preconceito. Mais do que novos protagonismos, trata-se, pois, de acolher pessoas não-LGBTQI+ em eventos LGBTQI+, resistindo desta forma à tentação de excluir pessoas com base nas suas emoções e afetos. Afinal de contas, o ativismo LGBTQI+ define-se pela luta contra o preconceito sexual e não pelo escalonamento de pessoas de acordo com a sua orientação sexual ou identidade de gênero.


Por fim, interpreto este elo entre pessoas LGBTQI+ e heteroqueers como um meio de “des-fazer (undoing) a ideologia da matriz heteronormativa” de que nos fala Judith Butler (1998; 2004). E, por via da prática, é, em última análise, um passo a caminho de uma teoria queer mais inclusiva.


3. Para além do desejo de pertencer


Identificar eventuais ganhos decorrentes da emergência de heteroqueers não significa rejeitar a possibilidade de risco. Pelo contrário, existem razões históricas que justificam a construção e proteção de espaços LGBTQI+ exclusivos. Duas razões porventura mais contemporâneas são apontadas por Diamond quando se refere, por um lado, ao “efeito de trivilialização e despolitização da sexualidade entre pessoas do mesmo sexo quando esta é retratada como um acessório de moda da heterossexualidade convencional” e, por outro lado, ao risco de que esta proximidade eventualmente artificial entre heterossexuais e LGBTQI+’s possa “obscurecer o contexto sócio-político da heterossexualidade compulsiva (Rich, 1980) ao ilustrar a identidade heterossexual como um assunto banal de livre escolha e preferência pessoal” (2005: 105).


Neste seu argumento, Diamond parte de uma tendência recente no mundo televisivo e cinematográfico de mulheres que beijam mulheres, não obstante a sua heterossexualidade pública – algo que tem vindo a ser designado por “heteroflexibilidade” (Essig, 2000). Vejamos por exemplo o beijo entre Madonna, Britney Spears e Christina Aguilera na cerimônia de Prêmios da MTV em 2003(14), bem como alguns episódios de Ally McBeal e The Sex and the City ou o filme Kissing Jessica Stein. Em todos estes exemplos, o lesbianismo é narrado enquanto parêntesis curto e experimental no percurso de mulheres heterossexuais que, após tal experiência, reforçam a sua heterossexualidade, descurando-se sequer uma eventual bissexualidade (15).


Em suma, o primeiro risco associado à participação de heteroqueers no espaço do ativismo é tornar invisível a opressão diária que afeta lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros numa sociedade patriarcal, sexista e heteronormativa. Adicionalmente, poderá existir um efeito reacionário decorrente do esvaziamento do potencial de transgressão e subversão destes movimentos, desta feita empurrados para o mainstream da inclusão assimilacionista (Thomas, 1997: 95). Por outras palavras, este seria o risco de acrescida vulnerabilidade à cooptação. Em paralelo, pode ainda representar uma diminuição na capacidade de agência por parte de pessoas LGBTQI+, desta feita sacrificadas perante o desejo de heterossexuais se afirmarem perante o grupo enquanto suficientemente transgressivos ou queer (Sclichter, 2004: 555). Por fim, a participação de heteroqueers pode ainda resultar numa perda de ligação às comunidades de base (Cooper, s/d).


4. (In)Conclusão


Os riscos identificados constituem possibilidades genéricas, desenhadas com base na experiência de países – em particular o Reino Unido, o Canadá ou os Estados Unidos da América – onde o ativismo LGBTQI+ tem uma longa história. Este artigo, pelo contrário, procurou centrar-se num conceito de “heteroqueer à portuguesa”. Passo a explicar. Em Portugal, com tanto por conquistar em termos jurídicos, sociais e políticos (Santos, 2005), considero fundamental o alargamento das bases sociais de apoio ao movimento LGBTQI+. Construir alianças, incluir outras minorias, aceitar diferenças – tudo isso faz parte de uma reconhecida necessidade de trabalhar em conjunto por uma sociedade menos injusta e mais inclusiva. Tal como Michael O’Rourke, tendo a acreditar que – e passo a citar – “uma ético-política heteroqueer transformativa pode, penso, suscitar uma (nova) política e ativismo queer, que abarque homens heterossexuais, mulheres heterossexuais, gays, lésbicas, bissexuais, transgêneros, transsexuais, intersexuais, concedendo-lhes o direito a ‘amar se, quando e como escolherem’ (Segal, 1994)” (2005: 114).


Até ao momento presente, a Teoria Queer e a sociologia não têm partilhado contributos científicos, contrariamente ao que se poderia supor dado o pendor desconstrutivista de ambas. Na verdade, muitos (se não mesmo a totalidade) dos pressupostos da Teoria Queer permitem novas abordagens dos fenômenos sociais seguramente úteis às ciências sociais em geral e à sociologia em particular. Foram, de resto, sociólogos como Gagnon e Simon, McIntosh e Plummer alguns dos principais responsáveis pelo desenvolvimento de análises construtivistas acerca de identidades sexuais e seus significados (cf. Epstein, 2002). A este propósito, Seidman argumenta que:


“...a Teoria Queer oferece aos/às sociólogos/as uma análise mais reflexiva sobre as categorias sexuais e o modo como tais significados sexuais se articulam com instituições de forma a moldar as dinâmicas de ordem e opressão. Os/as sociólogos/as, por seu turno, têm algo crucial a oferecer: uma tradição muito rica de análise sócio-estrutural e cultural que pode dotar de conteúdo empírico as análises conceptuais frequentemente literárias ou abstratas da Teoria Queer. (1996: 17)


Somos pessoas situadas. Isso reflete-se também nas nossas escolhas acadêmicas. Um campo tão imensamente vasto e apaixonante como a Teoria Queer não pode estagnar. Daí, também, a escolha deste tema que constitui terreno manifestamente fértil ao colocar desafios pouco trabalhados, ainda, pelas ciências sociais portuguesas. Um universo em aberto para pôr, decompor ou voltar a recompor de múltiplas formas, quando e se quisermos.


Notas de Rodapé


(1) - Uma primeira versão deste texto foi apresentada no Congresso Heteronormativity – A Fruitful Concept?, Department of interdisciplinary Studies of Culture, Norwegian University of Science and Technology, Trondheim, Noruega, 2-4 Junho 2005. Agradeço à Professora Sasha Roseneil os comentários a este texto, bem como a discussão que o mesmo suscitou com colegas do Women's Education, Research and Resource Centre (WERRC), Universidade de Dublin.


(2) - Ana Cristina Santos: Socióloga. Investigadora no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Mestre em Sociologia, FEUC, 2004. Doutoranda em Gender Studies pela Universidade de Leeds, Reino Unido. Autora de A Lei do Desejo – direitos humanos e minorias sexuais em Portugal (Porto: Edições Afrontamento, 2005). Membro fundador da Associação não te prives – Grupo de Defesa dos Direitos Sexuais. cristina@ces.uc.pt.

(3) - Um marco de viragem foi o artigo de Mary McIntosh (1968), “The Homosexual Role” e o seu antecessor “Homosexuality: The Formulation of a Sociological Perspective”, de W. Simon e J. H. Gagnon (1967). Estes artigos substituíram a anterior obsessão com as origens da homossexualidade por um enfoque no interesse que a homossexualidade desperta na sociedade, incluindo na investigação.


(4) - Teóricos construtivistas contemporâneos que estudam as sexualidades incluem David Greenberg (1988), Jeffrey Weeks (1995), Ken Plummer (1981), Monique Wittig (1993) e Pat Caplan (org., 1987), entre outros e outras.


(5) - Nomes centrais desta abordagem incluem Eve Kosofksy Sedgwick (1991), Judith Butler (1990, 1998, 2004) e Michel Foucault (1978, 1985, 1986).


(6) - Berger et al. (orgs.), 1995.


(7) - Bell and Binnie, 2000; Richardson, 2000; Weeks, 1999.


(8) - Halley, 1993; Schlichter, 2004; Seidman, 2001; Thomas (org.), 2000; Yudice, 1995.


(9) - Queen and Schimel (orgs.), 1997.


(10) - André et al., 2004.


(11) - Sobre o papel de teóricos heteroqueer, ver O’Rourke, 2005; Smith, 1997; Thomas, 1997 e 2000.


(12) - De acordo com o artigo 175º do Código Penal português.


(13) - Analiso o movimento LGBT português com maior detalhe em Santos, 2005.


(14) - Mais informação disponível em http://en.wikipedia.org/wiki/Madonna_Kiss.


(15) - Mais recentemente, destaca-se a relação entre Arlinda e Ana, ambas concorrentes no reality-show “1ª Companhia”, transmitido pelo canal televisivo TVI entre Novembro e Dezembro de 2005. Os beijos trocados entre as concorrentes são interpretados pelas próprias como fonte de diversão, não havendo a assunção de uma possível bissexualidade.


Referências Bibliográficas


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